quarta-feira, 8 de julho de 2009

COMBOIO SEM CHÁ





Três horas de comboio até à grande nova cidade indiana, Bangalore, de que só conhecemos as bancas de jornais e comida situadas nas plataformas da estação. Abastecemos a mochila pequena de batatas fritas e garrafas de água. Não precisamos de mais: pela primeira vez assentamos corpo e bagagem num compartimento de primeira classe. A viagem de 26 horas até Mumbai tem refeições quentes servidas por funcionários fardados. Há toalhas húmidas para lavar as mãos. Sozinhos durante grande parte do trajecto, num silêncio aconchegado, a leitura do The Times of India surge como uma metáfora para nos perdermos na catalogação e decifração das nossas memórias. A poeira indiana começa a assentar e a sedimentar no nosso espírito.
Paramos nas estações intermédias escondidos atrás do nosso vidro fosco que impede a entrada do calor e de olhares curiosos. Falta o cheiro das samosas e aloo embrulhado em folha de bananeira que costumavam entrar pela janela. Está abafado e longínquo o pregão dos vendedores de chá - “chaiiiiiiiiiii, chaiiiiiiiiiiiiii” – tão característico o caminho-de-ferro indiano. Não conseguimos observar a carrada de passageiros que deixa momentaneamente a carruagem, durante o estacionamento nos apeadeiros modestos, para aliviar a bexiga na berma. Olhamos para o interior imaculado do nosso compartimento e notamos um vazio no lugar costumeiro dos escarros avermelhados de paan mascado e lixo acumulado ao longo de horas de viagem. Aqui não somos alvo de olhares penetrantes ou sorrisos espontâneos. Não há pedintes a arrastarem pelos corredores cotos em vez de pernas, nem representantes de castas nobres a reivindicarem os melhores lugares para si próprios. Não há desespero nem alegria. Somente um conforto monocromático.
Concluímos que todas as horas passadas anteriormente em comboios representam o retrato mais fiel e perpétuo do que é a nossa experiência da Índia. E recordo o episódio com o hijra que me afrontou com solicitações incessantes para que lhe desse uma esmola. Nego as rúpias à mão estendida em frente da minha cara e o homem vestido de mulher procura amedrontar-me: mete uma mão entre as virilhas e dá a entender que vai levantar a saia e mostrar-me o que por lá anda. O grupo de mulheres com quem partilhamos o compartimento barafusta com veemência e afugenta-o, num vai e vem de impropérios. Passada a tensão, as mulheres riem desbragadas com o episódio. Nós também. Porque na Índia também se ri.

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