terça-feira, 30 de junho de 2009

BALDE DE ÁGUA FRIA



Rameswaram é um dos locais mais sagrados da Índia. Logo ao amanhecer, peregrinos banham-se no mar da baía de Bengala antes de rumar ao templo Ramanathaswamy. Entre paredes, os devotos entregam-se a um labiríntico percurso que alterna preces e oferendas aos deuses com paragens junto a tanques onde lhes despejam na cabeça um baldes de água salgada. A AV entra na procissão, contando e suportando a passagem por 22 postos de água com respectivo “baptismo” sagrado. Termina satisfeita pela partilha religiosa, purificada dos pés à cabeça e certamente perdoada da matança encomendada de insectos indefesos. Eu desempenho o papel de mero observador, pelo que estou em crer que ainda tenho contas para ajustar. Mas antes é preciso restabelecer energias com um prato de arroz verde.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

ÍCONES ILHÉUS




RAMESWARAM REMOTA


Uma via estreita e longa, paralela a uma linha de comboio quase assente sobre água, desemboca em Rameswaram. Estamos numa ilha remota, apartados dos percursos dos turistas ocidentais. A insularidade tem custos e não há variedade de hospedagem. Ficamos no “pomposo” e estatal Hotel Tamil Nadu. O quarto espaçoso permite acomodar duas pessoas mais uma família de osgas, esquadrões de melgas e exércitos de formigas gigantes. Ao princípio, ainda convocamos uma mortandade dos rastejantes. Um funcionário desinfesta o quarto com uma bomba manual como se estivesse a espalhar insecticida num campo de cultivo. Os corpos tombados são varridos e o nosso descanso atormentado por imaginarmos quanto karma negativo acumulámos. Horas depois, as formigas restabelecem as vias de comunicação e reocupam as posições perdidas. Rendemo-nos a este poderio militar e partimos à caça de comida. O restaurante do hotel é espaçoso como uma cantina mas a ementa subordinada ao arroz sambar: versão branco, verde ou vermelho. Mas no meio de tudo isto, respira-se uma calmaria inusitada.

sábado, 27 de junho de 2009

SONHOS DE CARANGUEJO


As janelas dotadas de vidros que não fecham dão acesso a uma paisagem plana e árida, enquanto arejam o interior com pó e gases vindos da estrada. Dentro de um autocarro indiano somos um enxerto de sardinha com enguia em lata. A tremideira é constante mas não há espaço para onde tremer. Estica-se a perna para lado nenhum e dormita-se encostado ao amparo de cabeça do assento da frente. Somos os únicos estrangeiros no veículo. Os rostos em redor estão ensimesmados nas próprias vidas. A música alta compete com o ruído das acelerações do motor. Um estrondo vindo da traseira desperta os passageiros. Pelo espelho retrovisor, o condutor controla a situação. Abana a cabeça em desaprovação. Junto ao último banco está agora uma mulher agachada. Procura reaver todos os caranguejos vivos que viajavam dentro de uma sacola enorme. O som de tenazes a bater sobrepõe-se magicamente às buzinadelas, música e falatório. Descobrimos dez centímetros de espaço para elevar os joelhos e ficarmos com os pés suspensos no ar. Encostamos a cabeça, agora às mochilas entaladas entre nós, e dormitamos de novo. Assumimos a forma de caranguejo, regredimos no tempo e compreendemos que a viagem à Índia não passou de um sonho.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

MADURAI ENDEUSADA






Tamil Nadu, nome de estado, acolhe-nos manhã cedo. Largamos as mochilas num depósito da estação ferroviária. A luz madrugadora mostra o pó disperso pelo ar daquele armazém e tolda um cenário de biblioteca secular onde se ocultam livros secretos. Deitamos a pesada carga em prateleiras velhas e usadas, com teias de aranha nos cantos. Corremos para a rua, na dúvida de as conseguiremos reencontrar. Madurai está meia adormecida. As lojas fechadas concentram a atenção na sujidade do chão. As gentes têm pele escura, a roçar o negro. Compramos bananas para o pequeno-almoço. À entrada do complexo de templos Meenakshi, dou o resto do cacho a um pedinte. A esmola não agrada e entramos no intrincado labirinto de deuses para pedir perdão. São milhares, em forma de estatueta, alcandorados em torres altas que fazem a ponte entre o terreno e o divino. Nós somos da terra. Movimentamo-nos descalços por caminhos maculados apesar da presença de um caixote do lixo coelho e pagamos 50 rúpias pelo privilégio de fotografar uma maravilha indiana. Quando resgatamos as mochilas, a camada de pó acumulado revela que devem ter passado 100 anos sem darmos conta. O tempo é caprichoso. Primeiro a urgência de horas que se desfazem em segundos. Agora, minutos que duram dias. Estamos de novo em andamento, apertados num ínfimo banco de autocarro.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

VARKALA ENÉRGICA



Do porto de chegada Kollam pouco reza a história, além de ruas com muito tráfego. Resolvemos ir jantar a um hotel mas chegamos demasiado cedo. Esperamos no átrio pela abertura do restaurante. As nossas roupas já esfoladas da viagem assentam em sofás de veludo. Não é a primeira vez que nos sentimos desfasados, mas a comida compensa o incómodo. No dia seguinte, apanhamos um comboio local até à praia de Varkala. Recebe-nos um mar agitado que vai de encontro aos nossos espíritos fatigados. Desta vez não apetece ficar, nem partir. Há momentos em que passa pela cabeça desistir. Observar a sucessão das ondas redime os nossos pensamentos. Ainda há tanto por ver e viver. E é assim que, à noite, já estamos de novo num comboio a caminho de Madurai.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

BASTIDORES DO KERALA





Neste trajecto indiano não faço ideia de quantas horas já passámos dentro de comboios. Para variar, apanhamos um autocarro para Allepey, ainda mais a sul, e chegamos a tempo de embarcar num cruzeiro pelos chamados “backwaters” de Kerala. Compramos banana chips (rodelas de banana estaladiças ao estilo batata frita) para nos distrair o estômago ao longo das sete horas de viagem por esta extensão de lagos e lagoas ligados por canais e irrigados por vários rios. Nas áreas mais estreitas do percurso as margens estão ocupadas por palmeiras e frondosa vegetação. E casas. E gente. Crianças a tomar banho na água, mulheres a lavar roupa ou a cozinhar, barquinhos a atravessarem jovens de mochila às costas. Quando as margens se distanciam surgem as já conhecidas redes de pesca chinesas. O ritmo do passeio é vagaroso e solicita a contemplação e a leitura. Atracamos para almoçar numa mansão circundada de frondoso jardim. A comida é servida numa folha de bananeira e os talheres são substituídos pela mão e pelo pão (chapati) com que empurramos o arroz. Regressados ao barco, descansamos de ruídos e de estímulos. O calor é aplacado por uma suave aragem. Dormitamos entre espreitadelas à paisagem.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

EXPRESSÕES KHATAKALI

DANÇAS DE (A)DEUS






Os vestígios portugueses em Cochim estão praticamente remetidos a peças de museu (e visitamos um excelente). A vivência é toda muito britânica. A religião católica assume preponderância e os jovens praticam críquete em todo o lado, à excepção de um improvável jogo de baseball. Sente-se uma atmosfera de bem-estar. À porta de uma escola, um grupo de crianças fardadas corre de encontro aos turistas que passam. Não pedem moedas. Contagiam sorrisos e submergem os estrangeiros para serem fotografados junto a eles. À tardinha assistimos a um espectáculo de Khatakali - misto de dança, teatro e música - em que um conjunto de gestos e expressões faciais formam o conjunto complexo de signos utilizado para ilustrar episódios da vida dos deuses indianos. Depois jantamos peixe fresco num restaurante ao ar livre. E constatamos que, outra vez, não apetece partir.

terça-feira, 16 de junho de 2009

WE LOVE CINEMA







A Índia é um dos maiores produtores cinematográficos do mundo. A indústria gera centenas de filmes por ano e os actores e actrizes são estrelas idolatradas por milhões de pessoas. As cantorias das bandas sonoras são mega sucessos que invadem o espaço musical nos autocarros e auto-riquexós, nas lojas e restaurantes, nos canais de televisão. Há complexos de salas que apostam no interior luxuoso, com alcatifas e poltronas, para fazer de uma ida ao cinema um autêntico evento social. Nas bancas onde compro revistas locais especializadas no tema (os jornais também têm secções inteiras dedicadas às estrelas e filmes), é fácil meter conversa. A Aishwarya Rai é um velha paixoneta pessoal e os locais vêem-na como uma deusa que ascendeu ao céu de Hollywood. Mas isso representa um problema: não se pode desejar uma deusa, pois não? O cinema indiano está invariavelmente associado a grande escape sexual desta nação pretensamente decorosa. Por azar ou por sorte, as filmagens que apanhamos em Cochim não incluem nenhuma actriz com decote generoso e mini-saia. E muito menos a Aishwarya.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

PARABÉNS EM HINDI


Dia de aniversário. Tenho tempo para preparar a surpresa enquanto a AV se entrega a uma massagem ayurvédica. Pergunto direcções à matriarca da casa familiar – pais, filhas e avó mais um quadro do Sagrado Coração de Jesus na parede - onde estamos hospedados. Nas desafogadas ruas de Cochim, vejo-me obrigado a pedir novas indicações. O inglês fala-se abundantemente e lá encontro uma florista. Aqui bastariam os gestos para apontar o pretendido. De ramo na mão, falta algo que se assemelha minimamente a um bolo. Aqui não há pastelarias como as nossas e os doces vendem-se em pequenas porções (aos quadrados ou às bolinhas). Encontro o bolinho numa pequena loja. De volta à guest house, peço uma vela. A solicitação com a explicação do porquê chegou para que família – e alguns vizinhos do bairro – felicitassem a AV ao longo do dia. No meio da correria, esqueço-me de inquirir como é que se diz parabéns em hindi.

domingo, 14 de junho de 2009

KOCHI PISCATÓRIA



Lanchar no Café do Vasco (da Gama) é uma das actividades que podemos fazer em Kochi, mais conhecida pelos portugueses por Cochim. O corpo do navegador esteve enterrado numa igreja local até ser devolvido à pátria mãe. Apesar deste laço histórico, na cidade portuária tem maior evidência o legado britânico. Aqui, língua de Camões só mesmo nos nomes de guest-house e restaurantes. Entrámos no estado do Kerala. O clima, temperado pela aragem do mar, influencia a personalidade dos habitantes. No Sul tudo se apresenta de forma mais descontraída. O nível de vida sobe um pouco o que auxilia a afastar o desespero da luta pela sobrevivência e respectivos impactos que isso tem na sociedade local e na relação com os turistas. O tom de pele escurece um pouco, contrastando com as roupas aqui limpas num estilo de branco mais branco não há. As cores berrantes regressam na comunidade piscatória. A beira-mar está repleta de “chinese fishing nets” que mais parecem uma intrincada construção aracnídea. Os homens arranjam as redes, preparam os barcos para a faina, vendem o pescado da jornada. A memória resvala inevitavelmente para Peniche. Mas aqui se dissermos “saudades” já ninguém entende.

sábado, 13 de junho de 2009

ESTAÇÃO-BARATA



Como se fossemos pilhas recarregáveis, um dia lá sentimos que chegou a hora de nos desligarmos de Palolem. Aproveitamos já com nostalgia os últimos raios de sol. Temos comboio aprazado para as 0h30. A estação está quase deserta. Na sala de espera, os funcionários agrupam-se em redor da televisão para assistirem a um filme. Desta vez a história é intrincada. Parece que mete vingança e violência à mistura e bem que gostava de ter coragem de aplicar alguma às baratas que rondam os nossos assentos. É o bicho que mais me repugna. Procuro um refúgio santificado mas uma delas olha para mim e começa a rir-se. Não constituem um exército numeroso, mas espalharam-se bem pelo terreno. Resta-me andar de olho nelas e controlar os respectivos movimentos. Ainda bem que o filme é um bocado imperceptível, assim não perco nada de especial. A noite vai alta mas está calor. Contamos os minutos de atraso do comboio. Pela frente, esperam-nos 15 horas de viagem até Cochim. De preferência sem animais rastejantes.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

SOL ENERGIZANTE




Em Palolem retemperamos forças graças à exposição solar, aos banhos numa água cálida, às sestas e amores debaixo de uma cama com mosquiteiro, às cervejas Kingfisher, aos bifes de búfalo com batatas fritas, aos ananases e cocos comidos no areal, aos gelados do logótipo do coração (aqui chama-se Kwality Wall’s). Vivemos dias a olhar para esta paisagem, apenas com idas esporádicas à Palolem interior, a das lojas de roupa e artesanato, ruas poeirentas, locais de acesso (lento) à Internet e da útil caixa automática. Gastamos uma média de 25 euros diários para desfrutar desta Índia paralela, numa cabana sobre estacas com vista para o mar. A nossa casa-de-banho tem um chão instável e desnivelado. Sempre que a usamos sentimo-nos a deslizar para o abismo. E preferimos não saber para onde vão os dejectos.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

PALOLEM PERFEITA



Convalescidos das agruras do Norte e da febre de Pangim, partimos à procura da nossa praia sem especiarias. Num almoço em Arambol pedimos um peixe grelhado sem tempero. Dão-nos um peixe sem tempero. Ou seja, só com masala... As outras mesas do restaurante estão ocupadas por viajantes do túnel do tempo. Goa ainda é destino – temporário ou permanente – de uma larga comunidade hippie. Roupas dos anos setenta, cruzes da paz, cheiro a erva. Os rostos reflectem resquícios de experimentações com ácidos e memórias de amores livres de barreiras. Não é ainda bem a nossa mistura pelo que rumamos a Palolem. E mesmo com o inevitável sabor turístico, sentimos uma atracção irresistível por esta baía debruada de palmeiras. Chegámos definitivamente à Índia perfeitinha. E agora, quem é que nos tira daqui?

quarta-feira, 10 de junho de 2009

TRANSPORTES RODOVIÁRIOS (PEDAÇOS DE...)