quinta-feira, 29 de outubro de 2009

CAFÉ IGUANA


Compramos bilhete para Hué no Café Sinh verdadeiro. Supostamente será um veículo e serviço orientado para o turismo. Queremos jogar pelo seguro nesta etapa inicial do percurso vietnamita. Na morada da partida deparamos com uma “sala de espera” composta pelas mesas e cadeiras de esplanada de um café decadente. Não estamos no Café Sinh… e a ida à casa de banho é uma asquerosa experiência higiénica. Nem na Índia encontrámos algo tão imundo. Lá fora, as mesas enchem-se de passageiros. São todos vietnamitas, à excepção de mais dois pares de mochileiros ocidentais.
Mal o autocarro arranca, o corredor enche-se de colchões e mantas. A viagem demorará toda a noite e este é o local onde dormirão os restantes motoristas antes de renderem o colega ao volante. O andamento é desenfreado e acompanhado de buzinadelas. Pela janela observamos os campos de arroz iluminados pelo luar. A música do nosso leitor de MP3 embala-nos o sono. Despertamos à meia-noite, esfomeados, com a paragem do autocarro. Desce-se com rapidez. Os passageiros dividem-se entre a mija no terreno baldio e o assalto às mesas do restaurante à beira da estrada.
Não há menu disponível nem se fala inglês. Em cima da bancada expõe-se tripas, miolos, enchidos e carnes indecifráveis. A oferta complementa-se noutro balcão oposto, repleto de frascos de líquido transparente onde nadam lagartos e serpentes mortos. Compramos dois pães. Simples, para espanto da senhora que nos atende. Obrigado, mas não desejamos nenhum caldo de iguana. E comemos o pão seco como se fosse a melhor sanduíche do mundo.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

O MELHOR AMIGO DO CÃO


Atracamos para almoçar junto a uma aldeia piscatória construída sob a água da baía de Halong. Um pequeno bote cheio de miúdos aproxima-se. Pedem-nos dinheiro. Insistentemente. Face à ausência de resposta afirmativa, simulam uma abordagem ao barco. Estamos meio parvos a observá-los. Regridem no avanço e,
já com a AV de costas viradas, fazem gestos atrevidos. Depois regressam a uma casa aquática.
Um cão espera-os na plataforma de madeira que forma o cais. Arrastam-no para dentro de casa. Seguem-se ganidos intensos. Depois um silêncio desolador. Não voltamos a ver o animal. No convés, A conversa flui e desvia-se dos monólitos de Halong. O tema do cão aflora à superfície e um dos guias da excursão avança que é possível terem morto o bicho. Explica-nos que a carne de cão é uma iguaria no Vietname. Até pode acontecer que, por uma ocasião especial como a recepção de visitas familiares, se mate o cão doméstico para compor a mesa... Os ocidentais horrorizam-se e expressam tristeza. Esta é daquelas diferenças culturais que custa a engolir. O rapaz vietnamita, ao observar o ar pesado dos turistas, solta uma gargalhada franca e contagiante. E diz: "Vietnamese eat everything!!!"
Nós não. E a despedida de Hanoi é adocicada pela descoberta duma geladaria frequentada por jovens (e respectivas motas) locais e sem menu em inglês. Pedimos um cone de "cocoa". Delicioso. Repetimos a dose, desta vez sem perceber o sabor escolhido. Volta a agradar. O trajecto para o quarto, apesar de uma Hanoi friorenta e meio deserta, é saboroso. E provoca a vontade de voltar num dia solarengo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

ESTRANHAS FORMAS DE VIDA




HALONG BAY EM TOM ARTIFICIAL







O tempo não dá sinal de melhoras. O céu branco assentou arraial na cidade vermelha. Decidimos por isso visitar a famosa Halong Bay num único dia em vez de uma excursão mais prolongada. Regressamos ao instinto para escolher um novo operador turístico. Os folhetos apregoam banhos de sol e de mar numa área com a chancela da UNESCO. Não teremos essa sorte mas pelo menos o guia fala um inglês aceitável e o grupo da excursão parece animado. No porto, centenas de barcos, grandes e pequenos, esperam ansiosamente por turistas. A bordo do nosso "galeão" de one-day-tour instala-se o bom ambiente, a contrastar com o clima nublado que teima em ofuscar o esplendor do golfo de Tonkin, pontuado por cerca de dois mil ilhéus de tamanhos divergentes e formas peculiares. Desembarcamos num dos de maior dimensão para visitar duas grutas. Estalactites e estalagmites desafiam as leis da física criando, com a ajuda de iluminação artificial, figuras saídas de um pesadelo do suíço HR Giger. Não satisfeitos com o surrealismo natural, os guias impingem-nos significados mirabolantes e rebuscados. Como se fossem necessárias pesadelos adicionais aos aliens que habitam as cavernas.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

GRUTAS DINÁSTICAS






A comida é um dos veículos preferenciais para mitigar agruras da viagem. O livro-guia recomenda o restaurante Little Hanoi. Na mesma rua encontramos dois, com o mesmo nome e placa. Acertamos no “verdadeiro” (aquele que se tornou famoso e “gerou” a cópia), que nos serve lombinhos de atum agri-doce e umas gambas com caju que deliciam o paladar sem a bateria de especiarias de outras gastronomias. Saboreamos o resto da cerveja no aconchego do restaurante, antes de sairmos para as ruas apertadas do velho bairro. Os espaços térreos dos edifícios estão ocupados por lojas, hotéis, cafés agência de viagens, bares e restaurantes, postos de Internet. Raras portas estão fechadas. As pessoas vivem a rua, seja sentadas em banquinhos de plástico dispostos no passeio ou encostados à acelera parada quase no meio da estrada. Regressamos à “nossa” agência Sinh fajuta. Mal por mal, esta já conhecemos. Mas exigimos um guia diferente para a excursão do dia seguinte.

O rapaz que nos guia é, de facto, outro. Mas o inglês macarrónico é o mesmo. Perdemos assim parte dos significados de Hoa Lua, antiga capital real do Vietname edificada durante as dinastias Dinh e Pre-Le (969-1009). Pouco resta do esplendor de outrora à excepção de um pagoda. Colamos ouvidos a outro grupo excursionista para captar explicações. Depois rumamos até às Tam Coc (Três Grutas) do rio Ngo Dong. Na margem esperam-nos mais mulheres-remadoras. Mas neste percurso, apesar das águas calmas, os barcos achatados são movimentados pela “capitã de bordo” e um ajudante que ajuda a navegação através de um pequeno remo.

O céu nebuloso tira brilho à bonita paisagem e a passagem por debaixo das famosas grutas acaba por ser o momento significante do passeio. A luz do sol desaparece gradualmente ao mesmo tempo que o tecto se aproxima do nosso barco ao ponto de nos “obrigar” a baixar a cabeça. Ressurgidos da escuridão, volta a visão dos pescadores no rio, dos camponeses nas margens e dos monólitos de pedra que formam a silhueta do horizonte. Dentro do nosso barco o cenário é outro. A ajudante coloca o remo de lado e retira bordados de um saco de plástico. Impinge-os aos passageiros que já antes tinham sido abordados por um barco-bar para comprarem snacks e bebidas em lata. Presos no meio do rio, não há como fugir ao assédio. Conclusão: o manual de vendas agressivas, tem no Vietname sempre um capítulo inesperado.


segunda-feira, 19 de outubro de 2009

RIO PERFUMADO DE VIDA(S)





PERFUME DE FÉ

À beira do Rio do Perfume, enxames de remadoras e fotógrafas, novas e velhas, esperam pelos turistas. Os barcos achatados percorrem um rio estreito, de águas calmas, com margens debruadas por pequenas elevações rochosas. O dia continua cinzento e frio. Aquecemos em terra firme com um treking de ritmo desenfreado, imposto pelo nosso guia. Descanso apenas e só em bancas de bebidas previamente combinadas. Percorremos quatro quilómetros até ao templo instalado numa gruta no cimo da montanha Huong Tich. Os altares evidenciam a mistura de influências que compõe a "tripla religião" do Vietname, derivada do budismo mahayana, do taoísmo e do confucionismo.
Regressamos em ritmo vertiginoso para almoçar numa mesa corrida. O grupo de turistas interage pouco. Aqui e ali um sorriso acabrunhado ou um pedido para passar o molho de soja. No início da digestão, deambula-se pelo complexo labiríntico dos templos que compõem o Perfume Pagoda. Um grito humano ecoa pelo ar. Persigo o som até encontrar um monge vetusto, de barba longa e branca, a encaminhar-se dolorosamente para o interior de uma habitação. O guia há-de dizer-me que o homem avistado é dos religiosos mais considerados do Vietname. Vive no Perfume Pagoda. Talvez ele me tenha perdoado pela ausência de gorjeta à remadora no final do percurso. Ela não. Vociferou numa língua desconhecida aos quatro turistas que saíram cabisbaixos do barco, sem moedas no bolso para aplacar aquela ira.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

CAFÉ DOS PECADOS


O nosso amarrotado guia de viagens da Ásia aconselha cautela na escolha da agência para excursões a partir de Hanoi. Aproveitamos o facto de quase todas funcionarem também como café e tomamos o pequeno-almoço numa delas. Bom, mas caro o suficiente para entendermos que os valores praticados não estão ao nosso alcance. Partimos então à procura de algo mais em conta. Não temos vida fácil. As ruas do velho bairro são um emaranhado de agências, que propõem pacotes demasiado similares com excepção do preço. Não há certezas de que os mais baratos cumpram o prometido. Com base no instinto decidimo-nos por um de entre os vários Sinh Café existentes. Apesar do nome comum, não pertencem todos à mesma agência. A legislação local permite a utilização das mesmas marcas e até logótipos por empresas diferentes. Um caso de sucesso, como este Sihn, é replicado prontamente. Na manhã da excursão, uma carrinha leva-nos até à porta da Open Tour Travel. O Sinh Café escolhido não é o original. Protestamos mas não queremos perder um dia de viagem. A visita ao Perfume Pagoda será feita com um guia turístico cujo inglês mal se entende.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O RAPAZ QUE PERDEU AS FLORES
(ENTRE OUTROS CONCIDADÃOS)

GEOMETRIA DE HANOI





quarta-feira, 7 de outubro de 2009

RECOLHAS ETNOGRÁFICAS


Estranhamente, a banda sonora do Teatro de Marionetas de Água Thang Long não é A Internacional Comunista. A música é tradicional e acompanha os movimentos e danças de bonecos operados por mecanismos submersos na água esverdeada. De origem rural, a arte passou a ser entretenimento de imperadores e, agora, atracção turística. Numa loja compramos um títere reformado. Completamos a recolha cultural com a visita ao Museu de Etnologia, que inclui oito réplicas de casas típicas de diferentes grupos étnicos do Vietname. Pelo meio, encontramos uma série de esculturas de madeira explícitas que seriam capazes de ruborizar os nossos bonecos das Caldas. Não ficamos acalorados. Depois dos banhos de suor da Índia e Tailândia, agora é tempo de o corpo se adaptar a um clima frio. E a uma atmosfera que asfixia devido aos gases de escape. A estrada chama-nos. Mas nunca haveríamos de partir antes de embarcarmos numa excursão.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

ICONOGRAFIA COMUNISTA






Desde a visita ao Museu das Mulheres que ficamos com a sensação de que o Vietname é uma nação matriarcal. Mas com um pai inequívoco: Ho Chi Minh. No museu, o Tio Ho surge em várias fotografias que o colocam, em pose de "pai-mentor", entre dezenas de raparigas e mulheres. Mas a (omni)presença do fundador do partido comunista indochinês estende-se às ruas e, inclusive, às nossas carteiras. O rosto de Ho Chi Minh aparece em cartazes, t-shirts e em todas as notas de Dong. O mausoléu construído em 1975 auxilia a perpetuação do culto. Juntamo-nos à longa fila que espera a ocasião de circundar a sala, sem paragens, que ostenta o corpo embalsamado do homem que lutou contra o colonialismo francês. Lá fora, espera-nos um Lenine em fundo branco e inúmeras representações da foice e do martelo.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

DESCOMPRESSÃO MONÁSTICA






Nesta longa viagem, a bonança está constantemente à espreita. Basta sobreviver às tempestades e não deixar medrar o pessimismo. Os templos religiosos resultam sempre num momento de acalmia. Construído no meio do lago Hoàn Kiêm, o pagoda Ngoc So’n evidencia influências chinesas. A paisagem auxilia a serenar os ânimos. Os sentidos deixam-se invadir pelo cheiro a incenso e pelas cores e formas das oferendas expostas nos altares. No milenar Templo da Literatura, intrincado de construções com significado filosófico-espiritual, assistimos a um espectáculo gratuito de música tradicional. Somos dois mergulhadores na câmara de descompressão. Fechamos os olhos e deixamo-nos embalar pelas notas suaves, debitadas por estranhos instrumentos, que mitigam os efeitos da ira matinal do nosso anfitrião vietnamita e a lembrança do céu cinzento que, lá fora, ameaça desabar em catadupas de água.