domingo, 31 de maio de 2009

CENAS DA VIDA DE UM RIO





sábado, 30 de maio de 2009

MORTE SAGRADA




A letargia é descontinuada com uma incursão madrugadora pelo rio. Um remador espera-nos apressado. São seis da manhã e os ghats já estão repletos de crentes que celebram o Prabodhini Ekadashi. Milhares de hindus purificam corpos e almas na água sagrada. A reentrada em terra firme faz-se em Manikarnika Ghat. Somos orientados, sem o solicitar, para o interior do crematório ao ar livre. A experiência é atordoante. Membros da casta dos intocáveis ateiam fogo a piras de madeira. Corpos inertes crepitam até se desfazerem em troncos de carvão humano. A morte à distância de centímetros. E então toca-nos. O cheiro intenso invade as narinas. As cinzas colam-se à nossa roupa. O fumo fustiga os nossos olhos. A intensidade do momento e do calor provoca a queda de lágrimas. Varanasi é um teste áspero. Confrontamo-nos com a impugnação íntima dos nossos medos, memórias e crenças. A cidade santa parece pedir que eliminemos a rejeição da inevitabilidade da morte. Pior ainda: exige-nos que aceitemos a finitude com benevolência e contentamento.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

QUEM VÊ CARAS PODE VER CORAÇÕES?



DEVIR NO GANGES




Deixamos de olhar intensamente para o calendário da partida e ler sobre o destino seguinte. Passamos dias a percorrer a beira-rio. O Ganges é um organismo com vida própria. Nele convivem tradições como as abluções dos crentes e uma poluição indistinta que colora o rio de castanho turvo. Ao sabor da corrente misturam-se sacos de plástico, cestinhos com velas cerimoniais e, ocasionalmente, pedaços de corpos humanos. Restos das cremações inacabadas por ausência de dinheiro para comprar a quantidade de lenha necessária. O pó de terra vermelha, levantado pelo vento, entranha-se nos poros da nossa pele. Com o passar dos dias sentimos pertencer um pouco a Varanasi. As crianças que calcorreiam as escadarias já nos conhecem. Do simples “hello” matinal ou vespertino evoluímos para trocas de impressões sobre a vida delas. De vez em quando compramos uma vela. Deitadas ao rio, navegam como a nossa memória à procura dos que já partiram e dos que estão longe. Desenvolvemos rituais: o pequeno-almoço na ocidental Bread of Life, o jantar numa “pizzaria indiana” ao ar livre. O dia entre templos hindus, lojas onde mergulhamos em mares coloridos de sedas, contemplações de pôr-do-sol nos ghats. Omnipresente, o rio parece velar por nós. Pela primeira vez, vivemos momentos – sempre somíticos – em que simplesmente estamos. Talvez seja isto a paz de espírito do sagrado.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

O RIO QUE NÃO DESCANSA




Jean Renoir fez nas margens do Ganges um dos mais belos filmes da história do cinema. O Rio Sagrado é um conto de emancipação, narrado através das fantasiosas paixões adolescentes. Um contexto de diferença cultural serve de cenário. Em Varanasi, o conceito ocidental do valor da perda humana leva uma bofetada letal. Os indianos anseiam desaguar nesta paragem. Há “torres de morte” onde peregrinos aguardam pela cessação da vida. Os cortejos fúnebres acompanham-se de cânticos alegres. As mortalhas de tecido que envolvem os corpos ostentam cores garridas. Padecemos da iluminação imediata que nos permita entender a famosa Índia espiritual. Não a encontramos. O dia a dia permanece um combate. Nos ghats (escadarias) somos assoberbados por crianças que vendem flores ou pedem moedas, adultos que anunciam viagens de barco ou massagens. O rio sagrado do filme surge como “a grande ilusão” de Renoir. Falta placidez para o entender devidamente.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

MÍSTICA ENCAPUÇADA




As incursões no ventre da cidade dificultam a apreensão do misticismo de Varanasi. A visão de múltiplos sadhus (ascetas) é sinal de que estamos num local entranhado de religião. Mas as ruas são o mesmo misto de poeira e lixo nas bermas e de trânsito caótico embora mais pedalado. No céu, o azul está esquartejado por grossas linhas negras. Os cabos eléctricos formam ninhos no cimo dos postes de madeira e propagam-se como um vírus às janelas em redor. Quando chove acontecem curto-circuitos que espalham faíscas como se estivéssemos numa revisitação tardia do Diwali. As paredes esburacadas exibem anúncios em forma de pintura ou cartazes de cinema. As bancas de rua são minimercados onde tudo se vende à unidade. Champô? Compra-se duas ou três saquetas daquelas que no Ocidente vêm gratuitas nas revistas femininas. É a economia de escala. Neste caso pobre e sem ligação ao divino.

terça-feira, 26 de maio de 2009

VARANASI PEREGRINA


Estão programadas doze horas até à cidade santa de Varanasi. Por Agra não ser a primeira paragem, a nossa carruagem já chega pejada de gente e lixo. A prioridade é resgatar os nossos lugares marcados. Travamos uma luta de entendimento. Mostramos os bilhetes, acompanhados por palavras em inglês e gestos veementes. Entram pessoas nos apeadeiros seguintes. Um compartimento de oito assentos já acomoda uma dúzia de pessoas. Contrariamos as pressões para mudar de carruagem a fim de acomodar membros familiares que ficaram separados. E durante 16 horas requisitamos forças escondidas para resistir a este país demasiado intenso, como o cheiro pestilento que paira no ar. As ventoinhas atarraxadas ao tecto apenas dispersam o cotão acumulado às próprias grelhas. Nos nossos beliches, viramos costas aos risos trocistas, rostos desafiadores e tosses convulsas. Uma nuvem de mosquitos baila em nosso redor. Somos apenas mais dois peregrinos que rezam para atingir Varanasi. Chegamos exaustos. Arrastamo-nos para o atiçado grupo de condutores de riquexó até encontrar alguém que nos leve ao sítio pretendido por um preço justo. É no terraço da nossa guest-house que finalmente comemos e descansamos com vista para a cidade que parece inacabada.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

ACENO SUFOCADO


Até na despedida Agra não deixa saudades. Demora uma eternidade o percurso nocturno que nos leva à estação ferroviária. Parece uma visita sem guia às partes mais degradadas da cidade que é um alívio deixar. O riquexó motorizado debita altos decibéis de ruído e carradas de gases sufocantes. Balançamos com as mochilas ao colo e desconfiamos do nosso destino enquanto penetramos nos arrabaldes. Aportamos semi-aliviados numa estação secundária, escura e desterrada. O condutor procura extorquir rúpias além do combinado. Tornou-se um hábito. O chão das plataformas está cheio de famílias, animais, trouxas. Além de nós, apenas mais um casal ocidental mochileiro. A noite vai alta e a espera é longa. Somos cercados por um grupo de homens indianos. Perguntam de onde somos, para onde vamos, como é a nossa vida em Portugal. Os olhares fixos e a catadupa de perguntas, aliados ao cansaço da noite alta, provocam desconforto. A inquisição termina quando o grupo corre apressado para apanhar o comboio que esperava. Já em andamento, a partir da porta, o único falante inglês que comunicara connosco apresenta um sorriso escancarado. Acena efusivamente aos novos amigos. Olhamos um para o outro e sorrimos. O episódio funciona como uma súmula da Índia: penosamente difícil de suportar mas, sempre que ficamos à beira do desespero final como no quadro O Grito de Edvard Munch, com um momento especial (e fugidio) à espreita.

domingo, 24 de maio de 2009

O LADO BOM DE AGRA




QUADRILOGIA DO TAJ


REDENÇÃO ALVA


Passadas as barreiras primárias – bilheteiras e controle policial – o Taj Mahal esconde-se atrás de um comprido muro avermelhado que circunda o recinto. Percorremos com excitação os metros que faltam até ao pórtico de entrada. O primeiro impacto tem algo de sobrenatural. Ao encarar o famoso objecto branco, ainda à distância, estacamos numa observação fascinada que dura alguns segundos eternos. É madrugada e os ínfimos visitantes movem-se como sombras. À medida que nos aproximamos, tem início uma dança de descobertas que só terminará ao pôr-do-sol. Surgem inscrições do Corão a negro, flores e motivos geométricos coloridos. O mausoléu erigido em nome do amor muda de personalidade consoante as diferentes intensidades da luz solar. A arquitectura redonda e feminina emana de todos os ângulos o sindroma da beleza simétrica. O Taj Mahal é um cliché. Concreto e justificado. Mas com um preço alto a pagar. Felizmente, já podemos partir.

sábado, 23 de maio de 2009

MARABUNTA HUMANA


Avistamos a cúpula da Jama Masjid mas não descortinamos como lá chegar. Caminhamos com os olhos postos no pináculo e, sem termos noção, enveredamos por uma rua estreita, ladeada de bancas de comida, roupa, aparelhos electrónicos. Num repente, como se abrissem uma comporta, ficamos submersos num mar de gente. Os olhares e as solicitações intensificam-se. O nosso espaço vital escasseia como se fossemos as formas lutadoras do quadro de Franz Marc. Sentimo-nos indefesos perante o avanço da marabunta humana, sem sítio para onde fugir. Assaltamos um auto-riquexó e pedimos com veemência ao condutor para sair dali. Rápido! Já! Já! Naquele casulo protector, à medida que nos afastamos, deixamos lentamente de ofegar. O coração pede para nos irmos embora. Daquela rua, de Agra, talvez até da Índia. O cérebro não ouve e desobedece às emoções. No nosso lar emprestado, bebemos cabisbaixos um chá pacificador. Amanhã é dia de Taj Mahal e queremos acreditar que vamos viver um momento sublime para esfregarmos da pele o lado agreste de Agra.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

FORTE RUBOR






A visita ao Forte de Agra é interrompida por jovens indianos que querem tirar o retrato ao lado da ocidental de pele branca. Acedidos os primeiros pedidos, a simpatia é confundida com permissividade. Chovem novas solicitações de fotografia: individuais, em grupo, com braço ao ombro... Acossada, a Andreia resolve a situação com um “no more” decidido. A perseguição prossegue e é preciso uma posição e voz mais vincada para a terminar. Na Índia, a “sobrevivência” do viajante parece indissociável de manter inviolada a fronteira invisível que o rodeia e lhe permite respirar. Os turistas “profissionais” despejados de autocarros de ar condicionado sabem-no bem. Depois da visita ao monumento, apressam-se a reentrar no rectângulo asséptico. É a partir da janela que compram as lembranças aos vendedores de rua. Nós, intrépidos ou inconscientes, adensamo-nos no labirinto de ruas de terra batida à procura de uma mesquita.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

UIVO LANCINANTE



O Hotel Sheela fica quase colado à porta Este de acesso ao Taj Mahal. Apesar das várias lojas de artesanato e de telemóveis, a rua é pacata e alcatroada. Um pequeno carreiro ao longo da muralha que protege o (provavelmente) monumento mais conhecido do mundo, leva-nos até ao rio Yamuna. Entardece e este não é um local turístico. Jovens jogam críquete ou mergulham na água. Na penumbra atrás de nós surge o Taj, num esplendor antecipado. O acto de contemplação é sobressaltado. Agra deixa vergões na alma e os sentidos jamais deixam de estar em alerta máximo. Feito o reconhecimento do local e das gentes, acedemos a um momento de pacatez junto ao depósito de lixo que faz as vezes de margem (plástico e mais plástico, em forma de sacos e garrafas). Um cão uiva ao companheiro isolado no outro lado do rio. Simpatizamos com a dor dele.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

O LADO AGRESTE DE AGRA




É um típico caso do “objecto certo no local errado”. Ir à Índia e não ver o Taj Mahal pode parecer uma blasfémia. Mas ir à Índia e ver o Taj Mahal pode significar a experiência paralela mais rude da vida. O riquexó motorizado que apanhamos na estação de comboios assim o prova. Durante o trajecto até à guest house pretendida somos assediados por um co-piloto entrado a meio do percurso. Propõe hotel, local especial para ver o Taj ao pôr-do-sol, a melhor loja de lembranças de Agra. Dizemos não a tudo. A falta de firmeza representa uma via aberta para gastarmos rúpias em esquemas menos claros só para escaparmos à táctica do cerco a que nos submetem. Persistimos na negação e temos como resposta sermos deixados a meio do caminho, sem o sabermos, com a justificação de o trânsito estar vedado. O “é já ali” representa um pesadelo inesperado: atravessar a pé o bairro mais sujo e feio da cidade. Recorro ao mapa para orientação e a nossa situação torna-se ainda mais frágil. Somos cercados por molestadores que procuram “oferecer” transporte ou sítio para dormir, para comer, para comprar artesanato. A solução é continuar a andar sem parar, na direcção cardeal que nos levará ao nosso destino. O desfecho da fuga asfixiante tem forma de jardim verdejante, quarto com lagarto na parede, casa de banho com ferrugem. E face ao que atravessámos, este é um final feliz.

terça-feira, 19 de maio de 2009

DECIFRAR O CÓDIGO DOS COMBOIOS


O utilitário guia Trains at a Glance dedicado aos caminhos-de-ferro indianos tem umas simpáticas 270 páginas. Inclui um mapa que assinala as linhas ferroviárias, coloridas por grau de importância. Nesta síntese esquemática que cabe numa folha, parece fácil deambular pelo sub-continente atrelados a locomotivas. Mas quando queremos marcar o percurso, surgem as tabelas e sub-tabelas, os horários, os transbordos, os dias de funcionamento, o tipo de classe... Números e letras baralham-se em cálculos exigentes até encontrar o melhor trajecto. Comprar um bilhete de comboio revela-se uma diligência quase tão grande como a própria viagem numa carruagem indiana.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

NOBREZA POPULAR




Udaipur é terra de marajá. Acabado o tempo em que se acumulavam riquezas múltiplas e poder político ao estatuto social herdado, abriram-se as portas dos palácios aos turistas pagantes. As famílias indianas fazem da ocasião uma festa. No interior fotografam, riem, percorrem como formigas apressadas os quartos e salões que ostentam magnificência com impudor. Nos jardins exteriores, comem, descansam, conversam. Sentamo-nos na relva com sensação de dever cumprido. Olhamos para um nicho com deuses indianos e pensamos sobre se devemos rezar ou não. É que a seguir vem Agra.

domingo, 17 de maio de 2009

ATESTAR O ESTÔMAGO




Aproveitamos Udaipur para comer bem, num conjunto de refeições acompanhadas de horizontes visuais que repousam a mente. Sentimo-nos turistas de corpo e alma, longe dos bairros de lata (com plástico no lugar da lata), dos esgotos a céu aberto e do lixo amontoado que vislumbrámos a partir do comboio à saída de Mumbai. Nestes refúgios ocidentalizados não encontramos a sujidade e o desconforto das ruas empoeiradas da cidade. Assentamos o corpo em almofadas fofas. Numa noite rumamos num barco privativo ao luxuoso Lake Palace, edificado no meio do lago. Espera-nos um jantar buffet por um preço obsceno para a Índia (60 euros/2 pessoas). Atestamos os nossos estômagos privilegiados, resistindo à tentação de nos sentirmos mal com o manjar. A congestão ocorre durante o pitoresco espectáculo de danças tradicionais. Ao nosso redor, proeminentes panças com copos de whiskie na mão espojam-se em cadeirões de verga. Emparedados entre dois mundos opostos – o da extrema riqueza e da extrema pobreza - sem pertencer a nenhum deles, regressamos reconfortados ao nosso quarto onde pendurámos um cordão de rede de pescador a fazer de estendal da roupa.