sexta-feira, 29 de maio de 2009

DEVIR NO GANGES




Deixamos de olhar intensamente para o calendário da partida e ler sobre o destino seguinte. Passamos dias a percorrer a beira-rio. O Ganges é um organismo com vida própria. Nele convivem tradições como as abluções dos crentes e uma poluição indistinta que colora o rio de castanho turvo. Ao sabor da corrente misturam-se sacos de plástico, cestinhos com velas cerimoniais e, ocasionalmente, pedaços de corpos humanos. Restos das cremações inacabadas por ausência de dinheiro para comprar a quantidade de lenha necessária. O pó de terra vermelha, levantado pelo vento, entranha-se nos poros da nossa pele. Com o passar dos dias sentimos pertencer um pouco a Varanasi. As crianças que calcorreiam as escadarias já nos conhecem. Do simples “hello” matinal ou vespertino evoluímos para trocas de impressões sobre a vida delas. De vez em quando compramos uma vela. Deitadas ao rio, navegam como a nossa memória à procura dos que já partiram e dos que estão longe. Desenvolvemos rituais: o pequeno-almoço na ocidental Bread of Life, o jantar numa “pizzaria indiana” ao ar livre. O dia entre templos hindus, lojas onde mergulhamos em mares coloridos de sedas, contemplações de pôr-do-sol nos ghats. Omnipresente, o rio parece velar por nós. Pela primeira vez, vivemos momentos – sempre somíticos – em que simplesmente estamos. Talvez seja isto a paz de espírito do sagrado.

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